Imunidade após infeção no centro das dúvidas do combate ao novo coronavírus

O nível de imunidade adquirida após a recuperação da doença Covid-19 é uma das maiores dúvidas no combate científico e médico à pandemia e há já vários estudos a apontarem para uma existência pouco duradoura de anticorpos.

A indefinição em torno da imunização e de aparentes casos de reinfeção foi reconhecida pela diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, que reiterou a importância da “humildade” de se assumir o desconhecimento da doença, ao salientar que se trata de “situações que não são ‘preto ou branco’”.

 

Graça Freitas explicou que pessoas que voltem a testar positivo depois de debelar a infeção podem não estar verdadeiramente doentes. “Pode significar apenas que, a nível da sua árvore respiratória superior, existam partículas do vírus e que o teste as detete, mas não quer dizer que sejam partículas viáveis do vírus e que sejam capazes de criar outra vez doença ao próprio ou a outras pessoas”, afirmou, sublinhando que, neste momento, “não há nenhuma prova inequívoca, nem em Portugal, nem em nenhum país, que exista esse fenómeno da reinfeção”.

Cerca de quatro meses depois da declaração de pandemia por parte da Organização Mundial de Saúde (OMS) e mais de seis meses após a descoberta do novo coronavírus em Wuhan, na China, cientistas de todo o mundo trabalham em contrarrelógio para o desenvolvimento de uma vacina ou de tratamentos específicos para a infeção causada pelo SARS-CoV-2.

De acordo com virologistas, a imunidade a outros coronavírus – como os responsáveis pela síndrome respiratória aguda (SARS) em 2003 e a epidemia de síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS) em 2012 – não é particularmente extensa, rondando entre ano e meio e três anos. Contudo, um estudo da universidade britânica King’s College London, divulgado esta semana, indicou que a imunidade à COVID-19 pode desaparecer em poucos meses.

A validar-se a conclusão deste estudo por investigadores não envolvidos na pesquisa, a eficácia de uma eventual vacina pode ser colocada em causa ou obrigar a administrações regulares.

Segundo o estudo, que analisou a resposta imunológica em mais de 90 casos confirmados, os níveis de anticorpos neutralizantes capazes de destruir o SARS-CoV-2 atingiram o pico médio em torno de três semanas após o início dos sintomas.

Com efeito, apenas 16,7% dos pacientes ainda apresentavam altos níveis de anticorpos neutralizantes 65 dias após o início dos sintomas, o que levanta dúvidas sobre a ideia de “imunidade de grupo” – na qual 60% a 70% da população precisaria de já ter tido contacto com o vírus - como uma estratégia de resposta eficaz à pandemia.

Quem mais se aproximou deste conceito de imunização foi a Suécia, que se opôs ao confinamento e nunca fechou escolas, cafés, bares ou restaurantes, apenas pedindo a cada um responsabilidade e respeito pelo distanciamento social.

Porém, um estudo da Agência de Saúde Pública revelou em 20 de maio que somente um em cada cinco habitantes de Estocolmo poderá ter desenvolvido anticorpos e que os números seriam ainda inferiores no resto do país.

Em Portugal, os resultados do primeiro estudo serológico para aferir a imunidade da população devem ser conhecidos até ao final de julho. Conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), em articulação com a Direção-Geral da Saúde (DGS), o inquérito – com uma amostragem superior a 2.000 participantes e que envolveu 17 hospitais e 105 postos de colheita - será seguido nos próximos meses por três novos estudos serológicos.

Paralelamente, o grau de imunidade é ainda influenciado pela gravidade que a infeção teve no doente. De acordo com um estudo do Instituto Pasteur, em França, anunciado publicamente em 26 de maio, uma grande maioria de pessoas doentes com COVID-19 e com sintomas ligeiros cria anticorpos que os podem imunizar durante várias semanas contra a doença, o que, em teoria, protege os doentes curados de uma nova infeção no curto prazo.

Em aberto está também uma hipotética proteção imunológica superior de diferentes populações. Um estudo do Centro de Estudos de Ciência Avançada e Tecnologia da Universidade de Tóquio, apresentado no final de maio, apontou para uma maior proteção imunológica das populações do Japão e de outros países da Ásia oriental devido à exposição anterior a patógenos relacionados, o que poderia explicar a menor mortalidade nesta região.

As diversas incertezas em torno da imunidade à COVID-19 refletem também a postura cautelosa da OMS ao longo do processo.

Já em 17 de abril, o organismo aconselhou prudência aos países no uso de testes serológicos para retirar conclusões sobre imunidade, não só por algum défice de sensibilidade dos testes nessa fase, mas também por o mero contacto com o vírus não permitir uma avaliação rigorosa do nível e da durabilidade da proteção adquirida.

No entanto, especialistas apontam também que a imunidade não se baseia somente na produção de anticorpos, uma vez que o corpo produz células imunes (B e T), ou seja, células de memória imune que podem ser desencadeadas para nova resposta imunitária face a uma nova infeção pelo vírus. Uma linha de investigação citada hoje por Graça Freitas, que vincou que “pode haver alguma imunidade feita por essas células” à COVID-19.

Nesse sentido, a nível de política de imunidade, a DGS assegurou estar “a acompanhar os inquéritos do resto do mundo” e Graça Freitas aproveitou para frisar que, a nível internacional, pensa-se cada vez mais que “a imunidade individual – aquilo que se chamou em tempos o passaporte de imunidade - tem pouco valor”.

A procura de uma vacina eficaz mobilizou - como nunca se tinha visto – a comunidade científica a nível mundial, num esforço conjunto e que tem batido recordes na redução dos prazos habituais de desenvolvimento e testes.

Em abril, um balanço divulgado pela revista científica Nature contabilizava mais de 100 vacinas candidatas contra a COVID-19, com a primeira vacina candidata a iniciar os testes em 16 de março, nos Estados Unidos.

A maioria das vacinas candidatas, sobre as quais existia então informação disponível, pretende induzir a formação no organismo de anticorpos (glicoproteínas) neutralizadores da proteína-chave do coronavírus, a chamada proteína da espícula, que permite que o SARS-CoV-2 entre nas células humanas ao ligar-se a uma enzima (substância proteica), a ACE2.

16-07-2020